Após oito dias de debates, oficinas, shows e muitos filmes, festival encerrou-se no sábado
Talvez Javier Milei, o candidato de ultradireita que enfrentará Sergio Massa no segundo turno das eleições à presidência da Argentina no domingo, já esperasse por uma reação a mais uma de suas declarações polêmicas.
Mas não uma mobilização de tamanho fôlego se comparada à importância de diversas outras promessas – ou ameaças – de campanha proferidas pelo deputado e líder da coalizão La Libertad Avanza, nome que se torna irônico, para dizer o mínimo, diante do perfil assumidamente conservador de sua candidatura.
A proposta em questão é incluir o Instituto Nacional de Cinema e Artes Audiovisuais (Incaa) no pacote das instituições a serem extintas em um eventual governo sob a sua liderança.
Favorável ao rompimento das relações comerciais com gigantes como China e Brasil, fundamentais para a economia argentina, Milei também já prometeu, entre outras propostas desvairadas, o fechamento do Banco Central do país.
Reunindo diretores, produtores, intérpretes, pesquisadores e gestores ligados ao cinema, além de um público total estimado em 4.200 pessoas, o Bonito CineSur teve um dos pontos altos da sua noite de encerramento, no sábado (11), na defesa do cinema argentino e no apoio aos cineastas hermanos que seguem na luta pela sobrevivência do Incaa a partir de 2024.
O manifesto de apoio ao instituto, que financia produções e dá suporte a novos cineastas, foi lido pela roteirista Josefina Trotta após a exibição de dois vídeos, um viralizado a partir da primeira projeção, em 2/11, na abertura do Festival Internacional de Cine de Mar del Plata, que, aliás, é organizado pelo Incaa, e outro produzido pelo festival de MS, com depoimentos de vários dos nomes presentes no Bonito CineSur subscrevendo a resistência hermana, que está no site e nas redes sociais do festival.
Os discursos da cerimônia de premiação seguiram na sintonia do apoio ao Incaa e ao cinema argentino. As produções escolhidas pelo júri oficial das duas mostras competitivas – filmes sul-americanos (categorias curta e longa-metragem) e filmes de MS – foram contempladas com o Troféu Pantanal, criado por Lula Ricardi e confeccionado por Buga Peralta, além de premiação em dinheiro.
FUTURO TREMENDO
“É uma luta constante, igual à de todos os colegas latino-americanos, é uma luta conjunta”, afirmou o produtor boliviano Alvaro Olmos, que levou para casa o troféu de Melhor Longa-Metragem Sul-Americano por “El Visitante”, dirigido por Martín Boulocq.
O enredo aborda a via-crúcis de um ex-presidiário, interpretado pelo uruguaio César Troncoso, para se reaproximar da filha, que foi adotada por um pastor neopentecostal e sua esposa.
“Este é um prêmio muito importante, a parte de que é muito bonito, maravilhoso, por tudo o que representa para a cinematografia boliviana, que ano a ano luta por canais, espaço e visibilidade, não só no continente mas no resto do mundo”, declarou Alvaro Olmos.
“Estou em demasiado feliz. Foi uma experiência muito preciosa ter estado aqui, em um festival de muita humanidade, onde nos sentimos muito acolhidos. Um futuro tremendo espera o Bonito CineSur. Que sigam apoiando um festival que preza pela integração com tanta humanidade e empatia, que tanta falta fazem ao nosso mundo”, disse a diretora chilena Katherina Harder.
A cineasta conquistou o Troféu Pantanal de Melhor Curta-Metragem Sul-Americano com o seu curta “Estrellas del Desierto”, uma trama infantojuvenil, de apelo para todas as idades, que combina amizade, paixão por futebol e os anseios de uma turminha com a escassez de água em um vilarejo do Deserto de Atacama, no norte do Chile.
O júri oficial internacional foi composto pelo cineasta brasileiro Walter Lima Jr., pela atriz paraguaia Ana Ivanova e pela roteirista argentina Josefina Trotta.
PANTANEIROS
O curta gaúcho “Sigma”, de Alan Rigs, que versa sobre o surto neonazista na internet, e o longa cearense “Mais Pesado É o Céu”, de Petrus Cariry, integraram essa mostra competitiva sul-americana.
Protagonizado por Matheus Nachtergaele e Ana Luiza Rios, o filme de Cariry recebeu uma menção honrosa, “em reconhecimento ao forte discurso cinematográfico e ao modo como estabelece diálogo com o público”, concedida pela imprensa especializada que acompanhou o festival em Bonito. A cineasta Jade Rainho e o professor de cinema Sérgio Moriconi, além deste que vos escreve, formaram o júri oficial da Mostra MS.
A diretora Jamille Fortunato recebeu o troféu de Melhor Filme Sul-Mato-Grossense pelo curta-metragem documental “Cordilheira de Amora II” (2015), fábula da vida real protagonizada por Cariane Martines, uma menina de nove anos da etnia guarani-kaiowá que faz do brincar instrumento de superação das agruras de quem não tem brinquedos e acesso a quase nada do que uma criança precisa para crescer dignamente, na Aldeia Amambai, no lado MS da fronteira do Brasil com o Paraguai.
Filmado com um celular, o curta surpreende pela condução leve, precisa e inventiva de Jamille Fortunato, que morou por seis anos em Campo Grande e atualmente vive na ponte Bahia-Europa-MS.
“Agradeço pelo acolhimento dessa terra. Eu, como baiana, vivi aqui uma parte de minha vida, colhi bons frutos na área de cinema e estou muito feliz de ter voltado”, disse Jamille, visivelmente emocionada.
A emoção também tomou conta de Marinete Pinheiro, diretora do documentário em longa-metragem “A Dama do Rasqueado” (2017), sobre a trajetória de Dona Delinha (1936-2022).
Além de vencer no júri popular, o filme deu à cineasta uma menção honrosa concedida pelo júri oficial, que destacou, no doc, “o resgate cultural e da memória de uma mulher fundamental para a cultura musical de Mato Grosso do Sul”.
“Sou sul-mato-grossense, e a Delinha é realmente a grande dama da música de Mato Grosso do Sul. Foi um privilégio para mim conviver com ela. Em 2023 está fazendo 10 anos que eu tive o primeiro contato com ela. A Delinha faleceu no ano passado e deixou uma significativa carreira musical e uma história de vida que eu pude trazer um pouco nesse filme”, afirmou a cineasta em seu discurso de agradecimento.
“É muito interessante que nós possamos ter mais janelas para o filme sul-mato-grossense, e essa é uma boa oportunidade, com certeza”, disse Marinete, que arrematou a fala fazendo menção à letra de “O Voo do Condor”, um dos muitos sucessos de Dona Delinha: “Eu voei graças a ela e nós estamos agora voando juntas”.
WALTER LIMA JR.
E haja emoção. Além de ter integrado o júri oficial MS e, como representante do Correio do Estado, o pool de jornalistas que atribuiu a menção honrosa a “Mais Pesado É o Céu”, tive a alegria de ser o responsável pela curadoria da sessão do longa “Inocência” (1983), baseado no romance de Visconde Taunay (1843-1899) com direito à presença de seu diretor, Walter Lima Jr., um verdadeiro gigante do nosso cinema, dono de uma trajetória de seis décadas e autor de “Menino de Engenho” (1965), “A Lira do Delírio” (1978) e outros clássicos das telas.
“O Walter enche o nosso coração de alegria, por sua presença e pela importância que ele tem para o cinema brasileiro”, destacou Andréa Freire, coordenadora-geral do Bonito CineSur.
“Muito feliz de estar aqui durante essa semana. Acho que é um festival que veio para ficar, um ponto de encontro necessário de convivência do cinema sul-americano, e acho que vai trazer um benefício muito grande para o cinema brasileiro e para os cinemas que estão em torno do Brasil todo. Que esse diálogo necessário se mantenha por muito tempo, se possível nesse festival”, disse o cineasta, ao receber o Troféu Memória.
“Agradeço extremamente de coração por ter sido convidado a participar do júri e a trazer o meu filme ‘Inocência’, que aos 40 anos de idade pode ser visto aqui, o lugar onde aquela história nasceu. Isso foi muito rico para mim. Ele, na verdade, é um filme daqui, embora tenha sido filmado no Rio. Aqui é o Brasil, e a gente estava representando exatamente isso. Essa brasilidade que vem daqui”, afirmou Walter Lima Jr.
“O audiovisual tem um papel a desempenhar neste momento na América Latina, e especialmente de integração da América do Sul”, afirmou o produtor Nilson Rodrigues, mentor e diretor do Bonito CineSur, quase no fim da cerimônia, que foi encerrada com um show de Charo Bogarín e Juan Sardi (Argentina).
“É uma indústria muito relevante. Significamos algo em torno de 4% da média do PIB dos países sul-americanos. Isso não é pouco. Geramos emprego e apontamos para o futuro de uma economia limpa, sustentável, que não destrua”, disse Rodrigues.
A segunda edição do festival foi prometida pelo produtor para 2024, cacifado pelo apoio da classe política presente: o prefeito de Bonito, Josmail Rodrigues, o deputado federal Vander Loubet (PT), autor da emenda parlamentar que viabilizou o Bonito CineSur, e o ex-ministro da Cultura Juca Ferreira, atualmente assessor da presidência do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES).