Escrita há quase 2.500 anos, peça ganha primeira montagem em Mato Grosso do Sul
Uma montagem enxuta, sem coro e com apenas cinco atores em cena, de orçamento estimado como “no suor e na raça” pela atriz Thaís Umar, que faz a personagem-título de “Antígona”. É essa a opção do diretor Fernandes F para levar ao palco, pela primeira vez em Mato Grosso do Sul, a tragédia grega de Sófocles, escrita no ano de 442 da era pré-cristã.
No enredo, a luta da heroína de Sófocles para dar um enterro digno a um de seus irmãos, Polinices, que morreu, assim como o outro, Etéocles, na disputa familiar pelo reino de Tebas. Para Creonte (Carlo Fabrizio), que acabou ascendendo ao trono, somente o segundo teria direito às honras fúnebres, contra o que se insurge Antígona.
Henrique Maciel (Hêmon, filho de Creonte e noivo de Antígona), Fábio Rezende (Tirésias) e Pietra Silva (Ismênia, irmã da protagonista) completam o elenco da peça inédita em MS, o que por si só já torna as duas apresentações da curta temporada de estreia, hoje e amanhã, às 20h, no Teatro Allan Kardec (Av. América, nº 653, Vila Planalto) um feito e tanto.
Mas quem conferir o espetáculo poderá se deparar com outros achados, a exemplo da precisão do Creonte de Fabrizio e do vigor com que Thaís vive a personagem que a acompanha há mais de uma década, além do resultado cênico que é fruto de uma adaptação forjada há mais de um ano, a partir de três diferentes traduções, e de seis meses de ensaio.
Os ingressos, a partir de R$ 45 (meia), estão disponíveis na web – https://linktr.ee/antigonaarrebolculturaluems – ou na bilheteria do teatro.
A montagem leva a assinatura do Arrebol Cultural UEMS. O Correio B esteve no ensaio geral da peça, na noite de terça-feira, e conversou com Fernandes e Thaís. Confira trechos da conversa.
THAÍS
O que tanto lhe atrai e mobiliza na peça e na figura de Antígona?
Por certo, a força dessa heroína, a determinação e o profundo amor que ela demonstra. Ela é um arquétipo que me remete à esperança. Eu tenho uma admiração por essa escrita de Sófocles e esse universo de temas tão profundos e atemporais.
Desde quando e como começou essa relação?
Li “Antígona” na época da faculdade [de Filosofia, concluída em 2007] e me interessei muito sobre todo o universo da tragédia. Em 2009, estudando teatro, à época trabalhando muitos textos que versavam sobre o universo feminino e o universo trágico, me encantei com o coro grego, a partir da pesquisa do coro, voltei a me encontrar com a obra.
Em 2010 fiz uma leitura dramatizada com alguns dos meus alunos do Ensino Médio. Fizemos um pequeno grupo no contraturno e lemos “Antígona” algumas vezes. Desde então, eu sabia que em algum momento essa montagem viria, passaram-se anos, deixei um pouco de lado, mas a intenção continuou.
Como se deu a aproximação e o diálogo com o Fernandes rumo à criação e à produção da montagem?
Eu estava determinada a montar enfim a peça. Em 2022, retomei o plano e comecei a me organizar e rabiscar, retomar a leitura, estava pensando em quem eu poderia chamar, quem toparia dirigir esse trabalho.
Eu já tinha participado de um musical com Fernandes e estava na produção do segundo, mas, poxa, eu nem cogitei chamá-lo, porque para mim ele não toparia, já que imaginei que ele se dedicaria apenas aos musicais, ele já é reconhecido como o diretor dos musicais em Campo Grande.
No entanto, em outubro de 2022, fui assistir a uma palestra do Fernandes, no Sesc Cultura, em que ele falou sobre seu trabalho e contou sobre sua pesquisa, ali eu descobri que “Antígona” havia sido objeto da pesquisa de mestrado dele, tudo fez sentido.
Uma feliz coincidência ou obra do destino, eu não precisaria mais procurar. Ao fim da palestra, eu falei para ele “Fer, a gente precisa montar”, e desde então não deixei mais ele dormir [risos]. Começamos os ensaios de fato em dezembro de 2023.
Depois veio Fabrizio, que também é um estudioso de “Antígona” há anos, como advogado, se aprofundou nas questões sobre Direito que a obra discute, já trouxe um Creonte muito próximo. E veio Pietra para Ismênia, Henrique para Hêmon e Fábio como Guarda e Tirésias, um grupo dedicado e disposto que abraçou o projeto.
Como se sente neste momento, às vésperas de estrear o espetáculo?
Este é apenas o início, ainda terá muita pesquisa e dedicação. Acredito que ainda tenho muito a descobrir e aprender com “Antígona”, essa obra é inesgotável, tem muita profundidade ali.
Estamos confiantes de que o que temos para esta estreia já é um bom material, nosso objetivo é desafiador, no sentido de manter a linguagem do clássico na atuação. Vamos estrear com muito amor, eu me sinto muito grata ao elenco todo e a todos os amigos, todos os envolvidos. Espero que uma mensagem de amor e esperança chegue ao público.
FERNANDES
O que os levou à decisão de preparar essa montagem?
“Antígona” foi tema da minha dissertação de mestrado e, desde então, eu tinha o desejo de montar o texto, o que se tornou realidade quando conheci Thaís e soube do seu sonho em protagonizar o texto.
Como foi o processo de aproximação da equipe com o texto e a adaptação?
Foi por meio de várias leituras do texto, assim como de várias análises da peça. Um filme grego também ajudou muito na discussão.
Alguma dificuldade maior ou algum grande achado?
Adaptar o texto não foi exatamente fácil, porém, a maior dificuldade foi achar o tom exato das personagens. O grande achado foi descobrir a atualidade do texto, principalmente nas falas de Creonte, o antagonista.
Por que “Antígona” e Sófocles permanecem tão atuais?
Por tratarem de temas universais como a solidariedade e, sobretudo, a defesa dos direitos.
O que a sociedade contemporânea “aprendeu” ou não com a tragédia grega?
Desconfio que não tenha aprendido muita coisa. Inclusive, citaremos um texto de Millôr Fernandes ao fim da peça que trata exatamente disso. É um privilégio estrear um texto dessa relevância em Campo Grande. Não é exatamente o tipo de peça fácil que todos procuram, mas é com certeza um texto que todos precisam.