Lenilde Ramos é um dos dois nomes de MS agraciados com o 10º Prêmio Grão de Música

O que pensa da presença do teu nome entre os premiados desta 10ª edição do Prêmio Grão de Música?

Para começar, minha presença nesse prêmio se deve à Thamires Tannous, compositora e cantora de Campo Grande, dona de um trabalho que admiro pelo conteúdo e pela qualidade sonora e ótima garimpeira, porque as pessoas conhecem mais meu trabalho de intérprete que o autoral. Thamires recebeu o Grão de Música em 2015 e me indicou ao prêmio. A própria Thamires me informou da iniciativa dela. Levei um susto e imaginei que a coisa ficaria por aí, pelo fato de saber de muita gente que tem carreira e saldo bem maiores que os meus.

A confirmação veio por Socorro Lira, (paraibana) criadora do prêmio, multiartista e produtora, que já tem meu respeito por olhar para o Brasil de dentro. Quanto ao reconhecimento, confesso que ainda não caiu a ficha nessa dimensão. Meu trabalho autoral sempre foi respeitado pelos que o conhecem, mesmo sendo apresentado a conta-gotas, por isso nunca imaginei nada nessa dimensão. Agora, quem tem que olhar com mais cuidado pra ele sou eu.

Como apresentaria a tua expressão musical para quem ainda não a conhece?

Nasci em uma casa musical, onde se ouvia do (compositor russo Ígor) Stravinsky (1882-1971) a Jackson do Pandeiro (1919-1982) e Délio (1925-2010) & Delinha (1936-2022). De minha parte, ouço e bebo um pouco de tudo, do (compositor tcheco Gustav) Mahler (1860-1911) a Pixinguinha (1897-1973) e cantos guarani. Gosto de trabalhar melodias, gosto de fusões, como a da polca-rock, e sigo o conselho que Manoel de Barros (1916-2014) me deu: “Não me venha com nada bonitinho”.

Gostaria que contasse um pouco sobre a tua formação musical, e talvez alguns dos momentos significativos dessa trajetória. Pode ser?

Comecei a aprender música em casa, com cinco anos. Meu pai tocava violão, bandolim e era compositor. Minha mãe estudava sanfona. Quando viram que eu tinha jeito, me puseram na escola de música. Por 10 anos devorei os clássicos e fui apurando os ouvidos. Com 15 anos comecei a compor. Com 16, disputei e ganhei o primeiro festival organizado pela Glorinha Sá Rosa. Meu concorrente, na época, foi José Octávio Guizzo, grande amigo. A música sempre fez parte da minha vida. Já toquei em grandes teatros, embaixo de lona em acampamento de sem-terra, em Nova York na sede da ONU (2014), em escolas, bares, festas, bailes… Todos momentos bem significativos para mim.

Por que o acordeom?

Comecei no piano, mas o acordeom é mais fácil de carregar, né? Mas, pra ser sincera, tenho uma ligação especial com esse instrumento, porque ele dá autossuficiência ao músico. Você toca com banda, mas sozinho ele também dá um bom resultado. Com o tempo, a sanfona virou uma grande companheira e vai comigo pra todo lugar.

Chegou a passar pelas dificuldades recorrentes para qualquer mulher quando se dedica à música? O que pensa sobre essas barreiras? E como vê o quadro atual?

Não quero ser pretensiosa, mas as barreiras que encontrei foram mais de ordem econômica que sociais, no sentido de ser uma mulher em um cenário majoritariamente masculino. E aqui confesso um pecado: nunca tive coragem de viver só de música. Sempre tive um emprego para garantir espaço pra música. E, mesmo quando resolvi viver só de música, e isso durou uns 10 anos, me dividia entre o que chamo de “trabalho braçal”, que é tocar em festas, eventos, na noite, e o “trabalho autoral”.

Quanto ao quadro atual, o que o define para mim é o empreendedorismo. O trabalho artístico precisa ser encarado com profissionalismo, criatividade, organização.

Outro aspecto curioso, no teu caso, é o talento para a escrita. O que inspira ou mobiliza a Lenilde letrista?
São dois caminhos que sempre seguiram juntos, e temos outros exemplos também. Paulo Simões e Rodrigo Teixeira também são jornalistas e músicos e escrevem superbem. Para compor, sempre parti da letra e busquei letras de amigos como Emmanuel Marinho, Joel Pizzini e Manoel de Barros, de quem musiquei dois poemas. Minhas letras tanto perseguem o universo sul-mato-grossense quanto o cenário do mundo. Vejo minhas letras como uma herança do trabalho jornalístico. Gosto de falar de coisas reais.

Como a instrumentista “conversa” com a letrista? E a cantora?

Ricardo Carvalho, um grande jornalista e comunicador brasileiro (1948-2021), me dizia: “Você é uma sanfoneira que escreve ou uma escritora que toca sanfona?”. E eu dizia: “Sou as duas coisas”. Agora, com a voz, foi diferente, porque eu achava que tinha que cantar agudo que nem a Tetê Espíndola, grande amiga. Não saía nada, e quase larguei mão de cantar. Só não sabia que era contralto, e quando descobri isso, minha voz se libertou e não parou mais. Adoro cantar. Me realizo cantando. Foi por isso que me dei bem como “trabalhadora braçal da música”, cantando todos os gêneros e idiomas que consegui. Até agora são sete.

E como se dá o trânsito, se é que há, entre as diferentes formas de escrita a que se dedica? Quando sabe ou define se o que está a criar é a letra de uma canção, uma crônica, poema, etc. Ou não dá tanta importância a essas distinções?

Nesse caso, são coisas bem definidas, porque a gente vai no produto já de caso pensado, né? A afinidade entre esses gêneros é que estou ficando cada vez mais minimalista. Minhas crônicas são daquelas que a pessoa abre o celular e enxerga ela quase toda. As letras de música são miúdas, e meus poemas são verdadeiros haicais. Cada vez mais magrinhos, mas perseguindo significados profundos. Tipo: “Pensando imerso evaporo inverso”.

Poderia falar sobre o Guilherme Rondon e, eventualmente, sobre algum outro colega de PGM?

Se eu começar a falar aqui o tanto que admiro o trabalho do Guilherme Rondon, vão achar que estou exagerando. Mas é verdade. Conheço o Guilherme desde suas primeiras composições, e ele é de um refinamento, de uma elegância musical e de uma consistência musical absurdas. Até me dá um frio na barriga ter sido indicada junto com ele ao Prêmio Grão de Música. Quando eu crescer, quero chegar perto do que ele faz, só que no meu estilo e com minha sanfona.

Conheço o Juraildes da Cruz, de Tocantins. Consegui trazê-lo uma vez a Campo Grande, em 2016, para um show fechado. A musicalidade dele é tão contemporânea e ao mesmo tempo tão raiz. É disso que eu gosto, de fusão. Também admiro o Vital Lima, do Pará. Já estou mergulhando no trabalho dos demais indicados. Uma oportunidade de ouro.

Aproveitando, poderia falar sobre a iniciativa da Socorro Lira com essa premiação?

Não conhecia o Prêmio Grão de Música e me penitencio por isso. Sou grata à Thamires Tannous, que me colocou nesse circuito. A proposta de Socorro Lira mostra o quanto é rico o Brasil de dentro e que existe vida além dos programas de tevê de domingo à tarde. Nosso país é riquíssimo em talentos musicais, e só projetos como o Grão de Música para revelar esses Brasis. Guilherme Rondon e eu estaremos lá mostrando um pouco de nosso litoral central.

Quais os teus próximos projetos?

O Prêmio Grão de Música significa também uma grande chacoalhada no meu processo musical. Preciso compor mais e dar mais visibilidade para minhas músicas. Então, já que estou com 71 anos, meu próximo projeto é me transformar em uma Helena Meirelles (1924-2005), de quem fui grande amiga. Antigamente eu quebrava paradigmas fazendo parte do grupo das poucas mulheres, que aqui em MS não foram tão poucas assim. Agora, quebro o tabu da idade e não penso em parar tão cedo. Muito pelo contrário. Novidades pelo caminho? Talvez trocar minha sanfona 120 baixos por uma de 80. Lembra daquele pensamento do dia? “Recuar? Só se for pra pegar impulso”.

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