Diretor fala sobre processo de produção e criação de espetáculo
Apaixonado por William Shakespeare (1564-1616) e vidrado em “Ricardo III”, uma das mais célebres tragédias do dramaturgo inglês, Al Pacino estreou na direção de longa-metragem com um híbrido, entre documentário e ficção, que vasculha o processo de montagem do clássico texto teatral. Porém, tudo se passa na Nova York dos anos 1990 – ou quase isso.
“Ricardo III – Um Ensaio” (1996) perscruta, na verdade, o significado e a relevância da peça de Shakespeare para o mundo contemporâneo, tendo à frente, como diretor, um dos maiores astros de cinema dos EUA, que, duas décadas antes, no palco, viveu pessoalmente o soberano protagonista.
Mas e se a dramaturgia, em vez de ter quatro séculos, partir de um texto forjado no processo colaborativo há apenas dois, três meses e ainda em processo de consolidação?
Como ficam a intenção do texto, a postura corporal, a impostação de voz, o gestual e a movimentação em cena, a manipulação de objetos e a atenção às “deixas” de um intérprete para outro?
Quem responde isso é Nill Amaral, diretor da Cia Ofit e de “Até que a Morte nos Repare”, novo espetáculo da trupe, pela segunda edição do projeto Amadores, que estreia hoje, no Sesc Cultura, em curta temporada, com mais duas apresentações (amanhã e sábado), sempre às 19h30min, com entrada franca e classificação indicativa a partir dos 12 anos.
“O que eu venho buscando no processo de ensaio é aguçar a sensibilidade de cada ator ou atriz, com referências que possam contaminar a sua criação, e eles mesmos possam construir um trabalho, tanto no espaço fechado como a céu aberto.
Nesse contexto, surgem grandes nomes das artes cênicas, tais como Pina Bausch e Bertolt Brecht, no intuito de expor ideias e de provocar experimentação, capazes de somar ao processo criativo do artista intérprete”, diz Nill Amaral.
E
ste repórter do Correio do Estado acompanhou um dos ensaios da montagem, durante o fim de semana, e, de fato, coincidência ou não, o nome de Pina veio à mente, entre outros dramaturgos. Diretor e elenco jogam a todo o tempo com referências mil, de clássicos do cinema a bandas do indie rock britânico.
O elenco em questão reúne, ao lado de Ligia Prieto e Samir Henrique – que, embora jovens na estampa, já possuem régua e compasso no riscado teatral –, cinco estreantes em cena, que é justamente a proposta do Amadores II: marcar essa passagem, tanto quanto possível, para a profissionalização. São eles: Stephanie Verazzi, Bruno Samaniego, Karine Araújo, Melinda Almeida e Vini Willyan.
Mas, afinal, do que trata o texto de “Até que a Morte nos Repare”? Pouco se sabe além do informado pela divulgação do projeto: “Como um thriller, o espetáculo traz uma narrativa cheia de surpresas e de suspenses a cada cena, em que o público passa a ter contato com pistas e álibis do mosaico de um crime. Esse quebra-cabeça, cujas peças não se encaixam com precisão, é o mote que atravessa a reconstituição de cenas, as dúvidas e os corpos prestes a explodir. Entre um detalhe e outro, uma sequência de versões sobre o suposto ocorrido cria um ambiente no qual todos são suspeitos”.
BRAÇOS E CADEIRAS
De repente, durante o ensaio, os atores espalham um monte de cadeiras pelo espaço da sala de artes cênicas do Sesc Cultura.
Em seguida, dois deles, de pé nos seus assentos, cada um em uma extremidade da fileira, começam uma caminhada trôpega e desequilibrada em direção ao centro. O andar em cima das cadeiras segue na cadência do diálogo, exasperante e fatalista, dos dois personagens.
Corta. Volta para a discussão coletiva sobre as possibilidades e os eventuais reparos da cena. Uma das atrizes novatas arrisca um comentário: “Acho que isso de ficar em cima só com os braços tem de trazer um desequilíbrio constante para ficar em cima. Tinha uma coisa que ele [outro colega] tinha feito antes que eu achei muito boa. Na primeira vez que fez, era algo, tipo assim, ‘já que eu não posso mais ficar aqui em cima…’”, diz.
Todos a olham fixamente. “É como se eu não fosse também para o chão, mas fosse para outro lugar também possível, sabe? Uma descida que te levasse para um lugar muito semelhante assim, nesse sentido”, finaliza a atriz. Parece que a maioria concorda.
“Vamos experimentar. Talvez, no lugar de irem ao chão, usem as cadeiras mesmo, como esse plano de deitar. Não sei, é uma ideia. Aí, pegar o ‘Titanic’. Tem uma coisa que vai aqui… Eu acho que esse desequilíbrio pode vir aqui e aí essa mão descer um pouco. Você cria uma perspectiva gestual mais nesse plano médio, para não ficar o tempo todo aberto”, sugere Nill Amaral.
COM OU SEM CHAMPANHE?
Sobre outro momento da passagem do texto, com mais atores em cena e que culmina com um dos intérpretes chacoalhando uma garrafa.
“Poderia, na hora da segunda vez, não precisar mais voltar com o champanhe. Talvez você deixe ele com alguém, em algum espaço. […] Você pode fazer isso durante a cena, uma ou duas vezes, mas, quando voltar, esteja sem champanhe”, define o diretor, sempre atento para a coesão de como se diz o que tem de ser dito.
E vale frisar: dizer aqui não é somente a articulação das palavras, porém, uma vez mais, a postura corporal, a expressão, o gestual, etc. O jogo de olhares – eye contact, como se diz em inglês – é permanentemente recobrado pelo próprio encenador.
“A tarefa que fica de um ensaio para o outro é que trabalhem as intenções do texto, busquem encontrar na palavra algum potencial de ação e aprofundem as intenções mesmo, para que possamos aprimorar o gestual em cena. A proposta é que eles não se apoiem em um ser ficcional de imediato, mas que o texto seja dito a partir de um repertório próximo deles, e que tenham algum ponto de vista sobre o discurso que estão dizendo”, explica o diretor Nill ao repórter após o ensaio.
A CÉU ABERTO
“Outras referências desenvolvidas durante o processo aparecem gradativamente, quando tento estabelecer uma conexão com as poéticas contemporâneas e no âmbito da palavra em cena ou do material de pesquisa desenvolvido por mim no decorrer do mestrado na Unicamp. Por exemplo, como o ator diz determinadas palavras de um texto, o que impulsiona dizê-las de tal maneira, quais possibilidades de ação e de movimento estão presentes durante a emissão das palavras do texto”, prossegue o diretor.
Uma outra curiosidade confidenciada a este repórter é sobre os ensaios em espaço fechado, mas com a apresentação a céu aberto (já que a encenação será no átrio do Sesc Cultura).
“A minha maior preocupação em propor a encenação em espaço aberto é ser fiel ao que propomos no espaço fechado, com uma dimensão maior, uma potência maior. E rezar aos deuses para que não chova”, brinca Nill.
“O encontro com o espaço da cena se deu em diferentes níveis. Primeiro pela própria redução de recursos para a execução do projeto. A realização no prédio do Sesc Cultura traz a possibilidade de prosseguir com as pesquisas da Cia Ofit e de reconfigurar espaços não convencionais para a cena, de modo que possamos revelar a arquitetura do lugar, com ele ocupando um papel importante dentro da encenação. Ou seja, o espaço fazendo parte do jogo teatral”, afirma o diretor.
VERSÕES
De volta ao ensaio. Nill proclama: “A gente vai fazer três versões e vamos escolher qual delas a gente apresenta. […] Eu acho que a intenção desse texto é assim: podemos tudo, dar as mãos, mas é mais do que isso, [só] dar a mão, eu acho que não é isso; acho que a gente pode tudo aqui. Foi bom tocar nesse ponto. Tem uma coisa que você [ator] fala das meninas, aí puxa de onde você veio. Eu vim desse ponto e cheguei até aqui”.
Ontem à noite foi o momento da marcação de luz in loco no átrio. “O elemento cadeira vai ser trabalhado, em diversos momentos, de forma ressignificada”, entrega Gil Esper, responsável pela visualidade da cena do espetáculo. Mas quem matou quem no enredo? Hora de se ligar no horário marcado para o espetáculo e correr para o Sesc Cultura.
Serviço
“Até que a Morte nos Repare”
Projeto Amadores II.
Consultoria dramatúrgica:
Éder Rodrigues.
Coordenação de criação de espaço e visualidade da cena:
Gil Esper.
Iluminação e montagem:
Rodrigo Bento.
Videografia e arte designer:
Bruno Augusto.
Assistente de vídeo:
Thiago Cunha.
Produção:
Cia Ofit e Thays Nogueira.
Hoje, amanhã e sábado,
às 19h30min,
no Sesc Cultura,
Av. Afonso Pena, 2.270, Centro.
Entrada gratuita.